terça-feira, 20 de agosto de 2013

ENCONTRO COM A POESIA - GONÇAVES DIAS - POR HORÁCIO PAIVA (CONTINUAÇÃO).




Ainda uma vez -Adeus 

I Enfim te vejo! - enfim posso, 
Curvado a teus pés, dizer-te, 
Que não cessei de querer-te, 
Pesar de quanto sofri. 
Muito penei! 
Cruas ânsias,
 Dos teus olhos afastado, 
Houveram-me acabrunhado
 A não lembrar-me de ti! 

II Dum mundo a outro impelido, 
Derramei os meus lamentos
 Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
 Baldão, ludíbrio da sorte
 Em terra estranha, entre gente,
 Que alheios males não sente,
 Nem se condói do infeliz! 

III Louco, aflito, a saciar-me
 D'agravar minha ferida,
 Tomou-me tédio da vida, 
Passos da morte senti;
 Mas quase no passo extremo,
 No último arcar da esp'rança,
 Tu me vieste à lembrança: 
Quis viver mais e vivi!

 IV Vivi; pois Deus me guardava
 Para este lugar e hora! 
Depois de tanto, senhora, 
Ver-te e falar-te outra vez;
 Rever-me em teu rosto amigo,
 Pensar em quanto hei perdido,
 E este pranto dolorido
 Deixar correr a teus pés.

 V Mas que tens?
Não me conheces? 
De mim afastas teu rosto?
 Pois tanto pôde o desgosto
 Transformar o rosto meu?
 Sei a aflição quanto pode,
 Sei quanto ela desfigura, 
E eu não vivi na ventura...
 Olha-me bem, que sou eu! 

VI Nenhuma voz me diriges!..
 Julgas-te acaso ofendida? 
Deste-me amor, e a vida
 Que me darias - bem sei;
 Mas lembrem-te aqueles feros
 Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram, 
Mal sabes quanto lutei!

VII Oh! se lutei! . . . mas devera
 Expor-te em pública praça,
 Como um alvo à populaça, 
Um alvo aos dictérios seus!
 Devera, podia acaso
 Tal sacrifício aceitar-te 
Para no cabo pagar-te, 
Meus dias unindo aos teus? 

VIII Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t'esquecerias,
 Que, sem mim, alegres dias
 T'esperavam; e em favor 
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
 O meu quinhão de alegria 
Pelo teu, quinhão de dor! 

 IX Que me enganei, ora o vejo;
 Nadam-te os olhos em pranto, 
Arfa-te o peito, e no entanto
 Nem me podes encarar;
 Erro foi, mas não foi crime;
 Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro, 
Vida e glória por te amar! 

X Tudo, tudo; e na miséria
 Dum martírio prolongado, 
Lento, cruel, disfarçado, 
Que eu nem a ti confiei:
"Ela é feliz (me dizia), 
"Seu descanso é obra minha."
Negou-me a sorte mesquinha. . .
 Perdoa, que me enganei!

 XI Tantos encantos me tinham, 
Tanta ilusão me afagava 
De noite, quando acordava, 
De dia em sonhos talvez!
 Tudo isso agora onde pára?
 Onde a ilusão dos meus sonhos? 
Tantos projetos risonhos, 
Tudo esse engano desfez!

 XII Enganei-me!... - Horrendo caos
 Nessas palavras se encerra,
 Quando do engano, quem erra
Não pode voltar atrás!
 Amarga irrisão! reflete:
 Quando eu gozar-te pudera, 
Mártir quis ser, cuidei qu'era... 
E um louco fui, nada mais! 

 XIII Louco, julguei adornar-me
 Com palmas d'alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude 
Co’o que se chama ideal?
 O meu eras tu, não outro; 
Stava em deixar minha vida
 Correr por ti conduzida,
 Pura, na ausência do mal. 

XIV Pensar eu que o teu destino
 Ligado ao meu, outro fora,
 Pensar que te vejo agora,
 Por culpa minha, infeliz;
 Pensar que a tua ventura Deus ab eterno a fizera, 
No meu caminho a pusera...
 E eu! eu fui que a não quis!

 XV És d’outro agora, e pr'a sempre!
 Eu a mísero desterro 
Volto, chorando o meu erro,
 Quase descrendo dos céus! 
Dói-te de mim, pois me encontras
 Em tanta miséria posto, 
Que a expressão deste desgosto 
Será um crime ante Deus!

 XVI Dói-te de mim, que t'imploro 
Perdão, a teus pés curvado;
 Perdão!... de não ter ousado 
Viver contente e feliz!
 Perdão da minha miséria, 
Da dor que me rala o peito, 
E se do mal que te hei feito,
 Também do mal que me fiz!

 XVII Adeus qu'eu parto, senhora;
 Negou-me o fado inimigo
 Passar a vida contigo, 
Ter sepultura entre os meus;
 Negou-me nesta hora extrema, 
Por extrema despedida,
 Ouvir-te a voz comovida
 Soluçar um breve Adeus!

 XVIII Lerás porém algum dia 
Meus versos d'alma arrancados,
 D'amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; - e então,
 Confio que te comovas,
 Que a minha dor te apiede,
 Que chores, não de saudade, 
Nem de amor, - de compaixão.


N  O  T  A  S: 

 (1) Nota redigida por Onestaldo de Penafort, a pedido de Manuel Bandeira: “A poesia “Ainda uma vez - adeus!”, bem como as poesias “Palinódia” e “Retratação”, foram inspiradas por Ana Amélia Ferreira do Vale, cunhada do Dr. Teófilo Leal, ex-condiscípulo do poeta em Portugal e seu grande amigo. Gonçalves Dias viu-a pela primeira vez em 1846 no Maranhão. Era uma menina quase, e o poeta, fascinado pela sua beleza e graça juvenil, escreveu para ela as poesias “Seus olhos” e “Leviana”. Vindo para o Rio, é possível que essa primeira impressão tenha desaparecido do seu espírito. Mais tarde, porém, em 1851, voltando a S. Luís, viu-a de novo, e já então a menina e moça de 46 se fizera mulher, no pleno esplendor de sua beleza desabrochada. O encantamento de outrora se transformou em paixão ardente, e, correspondido com a mesma intensidade de sentimento, o poeta, vencendo a timidez, pediu-a em casamento à família. A família da linda Don’Ana - como lhe chamavam - tinha o poeta em grande estima e consideração. Mais forte, porém, do que tudo, era naquele tempo no Maranhão o preconceito de raça e casta. E foi em nome desse preconceito que a família recusou o seu consentimento. Por seu lado, o poeta, colocado diante das duas alternativas: renunciar ao amor ou à amizade, preferiu sacrificar aquela a esta, levado por um excessivo escrúpulo de honradez e lealdade, que revela nos mínimos atos de sua vida. Partiu para Portugal. Renúncia tanto mais dolorosa e difícil por que a moça que estava resolvida a abandonar a casa paterna para fugir com ele, o exprobou em carta, dura e amargamente, por não ter tido a coragem de passar por cima de tudo e de romper com todos para desposá-la! E foi em Portugal, tempos depois, que recebeu outro rude golpe: Don’Ana, por capricho e acinte à família, casara-se com um comerciante, homem também de cor como o poeta e nas mesmas condições inferiores de nascimento. A família se opusera tenazmente ao casamento, mas desta vez o pretendente, sem medir considerações para com os parentes da noiva, recorreu à justiça, que lhe deu ganho de causa, por ser maior a moça. Um mês depois falia, partindo com a esposa para Lisboa, onde o casal chegou a passar até privações. Foi aí, em Lisboa, num jardim público, que certa vez se defrontaram o poeta e a sua amada, ambos abatidos pela dor e pela desilusão de suas vidas, ele cruelmente arrependido de não ter ousado tudo, de ter renunciado àquela que com uma só palavra sua se lhe entregaria para sempre. Desvairado pelo encontro, que lhe reabrira as feridas e agora de modo irreparável, compôs de um jato as estrofes de “Ainda uma vez - adeus!”, as quais, uma vez conhecidas da sua inspiradora, foram por esta copiadas com o seu próprio sangue.” 
 (2) A estas alturas sou tentado à exploração dialética, intertextual, de outro poema de Gonçalves Dias, também inspirado pela musa Ana Amélia, mas escrito antes dos sucessos dramáticos que os envolveram. Trata-se de “Olhos verdes”, e o associo a dois outros de temática igual: o primeiro, de Camões (1524-1580) - e portanto anterior ao de Gonçalves Dias; o segundo, posterior a este, é de outro brasileiro ilustre: o parnasiano Vicente de Carvalho (1866-1924). Vejam os três - e percam-se nesses sonhos: 

 De Gonçalves Dias: 

 OLHOS VERDES 

 São uns olhos verdes, verdes, 
 Uns olhos de verde-mar, 
Quando o tempo vai bonança;
 Uns olhos cor de esperança, 
Uns olhos por que morri; 
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas, 
Iguais na forma e na cor, 
Têm luz mais branda e mais forte. 
Diz uma - vida, outra - morte; 
Uma - loucura, outra - amor. 
Mas ai de mi!
 Nem já sei qual fiquei sendo 
Depois que os vi!
 São verdes da cor do prado,
 Exprimem qualquer paixão,
 Tão facilmente se inflamam, 
Tão meigamente derramam 
Fogo e luz do coração;
 Mas ai de mi! 
Nem já sei qual fiquei sendo 
Depois que os vi!
 Como se lê num espelho,
 Pude ler nos olhos seus! 
Os olhos mostram a alma, 
Que as ondas postas em calma
 Também refletem os céus;
 Mas ai de mim!
 Nem já sei qual fiquei sendo
 Depois que os vi!
 Dizei vós, ó meus amigos,
 Se vos perguntam por mim,
 Que eu vivo só da lembrança
 De uns olhos da cor da esperança, 
De uns olhos verdes que vi!
 Que ai de mim!
 Nem já sei qual fiquei sendo
 Depois que os vi!
 Dizei vós:” Triste do bardo!
 Deixou-se de amor finar!
 Viu uns olhos verdes, verdes,
 Uns olhos da cor do mar;
 Eram verdes sem esp’rança, 
Davam amor sem amar!” 
Dizei-o vós, meus amigos, 
Que ai de mi! 
Não pertenço mais à vida 
Depois que os vi!

 De Camões: MOTE ALHEIO
 Menina dos olhos verdes,
 Por que me não vedes?
 VOLTAS
 Eles verdes são, 
 E têm por usança 
 Na cor esperança
 E nas obras não.
 Vossa condição
 Não é de olhos verdes, 
 Porque me não vedes.
 Isenção a molhos
 Que eles dizem terdes, 
 Não são de olhos verdes, 
 Nem de verdes olhos. 
 Sirvo de geolhos,
 E vós não me credes, 
 Porque me não vedes. 
 Havia de ser,
 Por que possa vê-los, 
 Que uns olhos tão belos
 Não se hão de esconder. 
 Mas fazeis-me crer 
 Que já não são verdes, 
 Porque me não vedes.
 Verdes não o são
 No que alcanço deles;
 Verdes são aqueles
 Que esperança dão.
 Se na condição
 Está serem verdes, 
 Por que me não vedes? 

 De Vicente de Carvalho: 

OLHOS VERDES

 Olhos encantados, olhos cor do mar, 
 Olhos pensativos que fazeis sonhar! 
 Que formosas cousas, quantas maravilhas 
 Em vos vendo, sonho, em vos fitando vejo;
 Cortes pitorescos de afastadas ilhas 
 Abanando no ar seus coqueirais em flor, 
 Solidões tranquilas feitas para o beijo,
 Ninhos verdejantes feitos para o amor... 
 Olhos ensativos que falais de amor!... 
 Vem caindo a noute, vai subindo a lua...
 O horizonte, como para recebê-las,
 De uma fímbria de ouro todo se debrua;
 Afla a brisa, cheia de ternura ousada,
 Esfrolando as ondas, provocando nelas 
 Bruscos arrepios de mulher beijada... 
 Olhos tentadores da mulher amada! 
 Uma vela branca, toda alvor, se afasta
 Balançando na onda, palpitando ao vento;
 Ei-la que mergulha pela noite vasta,
 Pela vasta noute feita de luar;
 Ei-la que mergulha pelo firmamento
 Desdobrando ao longe nos confins do mar...
 Olhos cismadores que fazeis cismar!
 Branca vela errante, branca vela errante,
 Como a noute é clara! 
Como o céu é lindo!
 Leva-me contigo pelo mar... 
Adiante! 
 Leva-me contigo até mais longe, 
a essa Fímbria do horizonte onde te vais sumindo
 E onde acaba o mar e de onde o céu começa... 
 Olhos abençoados cheios de promessa! 
 Olhos pensativos que fazeis sonhar,
 Olhos cor do mar!

Nenhum comentário:

Postar um comentário