domingo, 26 de fevereiro de 2012

HORÁCIO PAIVA RELEMBRA O CONTERRÂNEO E POETA GILBERTO AVEINO.


LÂMINA ÓRFICA PARA GILBERTO AVELINO

ouvirás o som
do vento leste
no farfalhar das árvores
a plumagem dos pássaros
afagando

terá chegado a hora
de conduzir-te
a irmã morte
por são francisco de assis louvada
em votos fraternais

dos paços da lembrança
então verás
alvas salinas
a ilha e seu farol
em brilho de cristais

e não te espantes
porquanto estarás
na senda esclarecida
do que procuras

das janelas de tua casa
despertarás
em amanhecer de girassóis

e colherás a rosa
dos ventos
e o rumo sonhado
dos pontos cardeais

no barco votivo
à tua direita encontrarás
a senhora dos navegantes
em azul
e branco magistrais

e à tua esquerda
em lágrimas de alegria
e à voz da canção
santa luzia
em claridade sonora



e dessas damas cristãs
acompanhado
singrarás caminho
barra afora
ao silente cais

e hás de passar
com os teus passos
leves e lentos
- sobre o chão salgado -
o pórtico de deus

caminharás com os teus amigos
que ali reencontrarás

e do teu pai
as chaves da poesia
receberás

do teu pai
o porto amado em harmonia
a coroa de estrelas marinhas
que então colherás


(Horácio Paiva)

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NOTAS:

1) O talentoso poeta e advogado Gilberto Avelino foi um dos maiores amigos que tive. Uma das grandes vozes líricas do Rio Grande do Norte. Como advogado, era companheiro meu de escritório. Autor de vários livros de poesia. Após sua morte, editamos, eu e alguns amigos, a sua obra completa, com o belo e sugestivo título (criado por ele, poucos anos antes de sua morte) de “Diário Náutico”. Era filho do também grande poeta norte-rio-grandense Edinor Avelino.

2) As chamadas lâminas órficas (utilizadas pelos antigos gregos) contêm instruções para que as almas dos adeptos do orfismo saibam como conduzir-se no outro mundo. Várias dessas lâminas foram encontradas no sul da Itália (Magna Grécia) e em Creta. Utilizei a idéia, adaptando-a aos ícones do catolicismo, religião de Gilberto.

Transcrevo uma dessas lâminas, de grande beleza:

LÂMINA DE PETELÉIA

À esquerda encontrarás da casa de Hades
uma fonte e a seu lado alvo cipreste.
Não te aproximes dessa, que outra fonte
acharás junto ao Lago da Memória,
de água corrente e fresca, e diante dela
postar-se-ão Guardiães. Dizei: “Eu sou
filho da Terra e do Estrelado Céu (apenas)
e disso vós sabeis. Olhai porém:
seca-me a sede e estou a sucumbir.
Dai-me depressa, pois, essa água fresca
que deriva do Lago da Memória”.
E dar-te-ão a beber da Fonte santa,
e depois disso tu serás senhor
entre os demais Heróis.

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SOBRE A LÂMINA ÓRFICA DE PETÉLIA (Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
X Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul - Blumenau - 28 a 30 de maio de 2009)

5

A lâmina de Petélia, que data do século III-IV a.C, foi encontrada em escavações
de um túmulo, na cidade de Petélia, hoje, Comuna de Strongoli, ao sul da Península
Itálica. A lâmina foi escrita em grego em uma folha de ouro fino e, seguindo preceitos
órficos, foi enterrada junto a um corpo com finalidade de fornecer instruções e proteção
àquela alma no submundo. Atualmente, a lâmina encontra-se no Museu Britânico em
Londres.
As inscrições da lâmina remontam aos rituais órficos, realizados pelos ascetas
que seguiam os ensinamentos de Orfeu, que, curiosamente, são semelhantes aos da
doutrina cristã, guardadas algumas exceções. Segundo Russel/BERTRAND RUSSEL (1969), Orfeu, a figura
central do orfismo, é “uma figura vaga, mas interessante”:

Quaisquer que tenham sido os ensinamentos de Orfeu (se é que existiu), os
que hoje se conhecem são os ensinamentos dos órficos. Acreditavam na
transmigração das almas; ensinavam que a alma podia desfrutar, no outro
mundo, de uma bem aventurança eterna ou passar por tormentos
temporários, segundo a sua maneira de viver na terra. Tinham por aspiração
tornar-se “puros”, quer em parte, mediante cerimônias de purificação, quer
evitando certas espécies de contaminação. (...) O homem, afirmavam, é feito
metade de terra, metade de céu; mediante uma vida pura, a parte celestial
aumenta, diminuindo a parte terrena. (RUSSEL: 1969, p. 21)

Segundo os preceitos órficos, a alma egressa do corpo dirigia-se aos domínios de
Hades, senhor do submundo dos mortos e lá, deveria saber guiar-se para provar que era
digna de salvação. A lâmina de Petélia, com este propósito, foi enterrada junto ao corpo
de um defunto com as instruções para a alma no mundo dos mortos. Assim pregavam
suas inscrições:

Encontrarás à esquerda da Casa de Hades, uma fonte,
E, a seu lado, um branco cipestre.
Não te aproximes desse manancial.
Mas encontrarás um outro junto ao Lago da Memória,
De onde fluem águas frescas e, diante do qual, há guardiães.
Diz-lhes: “Sou um filho da terra e do céu estrelado;
Mas minha raça é do céu (somente). Vós próprios o sabeis.
E – ai de mim! – estou ressequido de sede, e pereço. Dai-me rapidamente
A água fresca que flui do Lago da Memória”.
E eles mesmos te darão de beber o manancial sagrado.
E, desde então, tu dominarás entre os outros heróis...

(RUSSEL, 1969, p. 22-23) Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
X Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul – Blumenau -28 a 30 de maio de 2009

6

FIGURA 1: Lâmina de Petélia (INSCRIÇÕES EM GREGO SOBRE A LÂMINA DE OURO FINO)

A Memória, Mnemosyne, é representada como a água da vida. Quem bebesse do m
anancial sagrado poderia manter o seu Ser e habitar junto aos deuses, assemelhando-se aos heróis. Ao contrário, as almas impuras que bebessem da água da morte do rio L
ethes, esqueceriam suas vidas terrenas a fim de reencarnarem:
Memória é água da vida, que marca oposição ao Esquecimento, cuja água da morte re
presenta a vida terrestre, ruída pelo tempo e pelo não ser. A sede da alma s
imboliza, sobretudo, a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um m
undo melhor. (...) As almas que se dirigiam ao Hades bebiam das águas do rio L
ethes, a fim de esquecer suas existências terrenas. Os órficos, todavia, na esperança de e
scapar da reencarnação, evitam o Lethes e buscam a fonte da Mnemosyne.
(AMADIO: 2007, p. 38-9)

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